O Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) determinou a imediata suspensão da lei municipal que previa uso da Bíblia como “material paradidático” em escolas públicas e privadas de Belo Horizonte. A Corte entendeu que a medida, aprovada e promulgada pela Câmara Municipal, fere a competência exclusiva da União de legislar sobre educação e atenta contra a laicidade do Estado. A decisão foi proferida na última sexta-feira (26).
O projeto que deu origem à legislação é de autoria da vereadora Flávia Borja (DC) e recebeu, à época de sua aprovação, o aval de 29 parlamentares. Oito foram contrários e dois se abstiveram. O texto prevê que histórias bíblicas auxiliem projetos escolares em disciplinas como história, literatura, artes e filosofia, assim como atividades pedagógicas complementares. Durante sua discussão na Câmara Municipal, Flávia Borja chegou a defender que o projeto não tinha caráter religioso e disse que a Bíblia seria “apenas um material de apoio e pesquisa” nas unidades de ensino de Belo Horizonte.
“Com efeito, lei de iniciativa legislativa que institui a bíblia como recurso paradidático e determina a utilização das histórias bíblicas, auxiliando os projetos escolares de ensino correlatos, nas áreas de história, literatura, ensino religioso, artes e filosofia implica em usurpação de competência do Poder Executivo, competindo privativamente à União legislar sobre educação, não podendo ser afastada a violação ao princípio da separação de poderes e a ingerência indevida do Legislativo na autonomia no Poder Executivo, interferindo a legislação em atos de gestão e estruturação de órgãos da administração pública”, diz trecho do voto da relatora do caso no TJMG, desembargadora Teresa Cristina da Cunha Peixoto.
Em outro momento da decisão, a relatora afirma que a Constituição brasileira garante a liberdade religiosa, bem como a laicidade do estado. Ainda, lembra que o ensino religioso é facultativo nas escolas públicas de ensino fundamental e “portanto, não obstante a bíblia possa ser usada como recurso paradidático, deve ser para fins culturais, históricos, literários ou filosóficos e não como leitura obrigatória, determinada no artigo 3 da lei em comento, usurpando, assim, a competência exclusiva da União”, destaca.
Em Vitória da Conquista a polêmica também foi estabelecida com a aprovação pela Câmara de Vereadores de lei semelhante.
A Câmara de Vereadores de Vitória da Conquista aprovou o PL do vereador Edivaldo Ferreira Júnior (PSDB), que autoriza o uso da Bíblia como material complementar nas escolas municipais. A matéria foi discutida antes e chegou a gerar alguma repercussão.
“A Bíblia não é apenas um livro espiritual. É o livro mais vendido do mundo, com mais de 5 bilhões de cópias traduzidas para mais de 3 mil idiomas. Qual o problema de ela ser utilizada como apoio didático? Estamos criando cidadãos, crianças com base em princípios”, argumentou o vereador autor do projeto.
O parlamentar também afirmou que o projeto não obriga escolas a adotarem o livro, apenas autoriza seu uso como recurso complementar. Edivaldo criticou colegas que, segundo ele, fazem “discurso para redes sociais sem ler a proposta”, e afirmou representar a maioria cristã da cidade.
“Projeto fere a laicidade e impõe visão religiosa”
A proposta foi duramente criticada pela OAB de Vitória da Conquista e pelo vereador Alexandre Xandó (PT), que entende que a medida afronta o princípio da laicidade do Estado brasileiro. Segundo Xandó, o texto foi elaborado sem diálogo com professores, sindicatos ou o Conselho Municipal de Educação.
“Disfarçado de proposta pedagógica, o texto privilegia, mais uma vez, uma religião específica em um espaço que deve ser inclusivo, científico e plural. Não é papel do Legislativo municipal definir quais livros entram em sala de aula, muito menos impor, uma visão de mundo religiosa em um ambiente que deve respeitar todas as crenças”, disse o vereador em sua rede social.
Xandó ressaltou ainda que não há ensino inclusivo onde há imposição religiosa, e destacou o risco de exclusão e discriminação de alunos que não compartilham da fé cristã.
“A escola é para todas as crenças — inclusive para quem não tem nenhuma. É um espaço de liberdade e respeito, e não pode ser transformado em extensão de púlpito religioso”, disse.
A Lei não obteve a sanção da prefeita Sheila Lemos (UB), mas foi promulgada pela Câmara.
O assunto gerou forte reação. Além do Sindicato dos Professores Municipais, que já havia se manifestado contra a proposta, agora a Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Bahia, Subseção Vitória da Conquista, também declarou publicamente sua oposição à lei.
Em nota oficial, a OAB aponta que a lei desconsidera a pluralidade religiosa presente na cidade e compromete a isonomia entre cidadãos, ferindo a Constituição Federal:
> “Ao priorizar a Bíblia, a lei compromete a isonomia entre cidadãos, prevista no artigo 5º, caput, da Constituição Federal, e a liberdade religiosa, assegurada no artigo 5º, inciso VI, do mesmo diploma”, diz o texto.
O sindicato dos professores também critica a iniciativa por entender que a inclusão de um conteúdo confessional no ambiente escolar viola o caráter laico da educação pública, além de não atender às reais necessidades pedagógicas da rede municipal.
A OAB ainda destaca que a lei promulgada pela Câmara, apresenta vícios formais, por usurpar a competência da União em definir diretrizes educacionais e por interferir na gestão curricular, atribuição do Poder Executivo Municipal:
> “Além das irregularidades materiais, a lei apresenta defeitos formais, ao usurpar a competência privativa da União para definir diretrizes educacionais (…), reforçam a invalidez de iniciativas que impõem conteúdos confessionais em ambientes escolares.”
A entidade defende que a norma seja contestada judicialmente por meio de Ação Direta de Inconstitucionalidade junto ao Tribunal de Justiça da Bahia.
“A Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Bahia, Subseção Vitória da Conquista, expressa sua oposição à Lei Municipal no 3.029, de 1 de agosto de 2025, promulgada pela Câmara Municipal, que autoriza o emprego da Bíblia Sagrada como material didático complementar nas unidades educacionais da rede pública municipal”
A prefeita não deu a sanção para a aprovação da Lei, neste caso, a lei foi promulgada pela própria Câmara de Vereadores.