Dirlêi Bonfim: Cabul aos olhos do mundo

(Por Prof. Dirlêi A Bonfim)*

 


Vamos iniciar este texto com a seguinte provocação: O que há de comum entre Cabul e Saigon…? A geopolítica internacional nunca inspirou confiança, muito pelo contrário, está mais para o cinismo e a hipocrisia habitual. Partindo do pressuposto que um determinado conjunto de ações e práticas realizadas no âmbito do poder, que normalmente envolve estados nacionais, com o objetivo de promover o gerenciamento e o controle de “seus territórios”. Há em todas as ações na verdade, um jogo de interesses escusos intermináveis, que movem às ações e a prática das nações, para a conquista dos seus objetivos nem sempre republicanos, aliás, na maioria das vezes sórdidos e mordazes, mas, camuflados e travestidos de “boas intenções e ajuda internacional”.

Todavia, o que percebemos, de forma muito nítida nestas relações de poder, invariavelmente, é que vão além da própria concepção de estado, como a constituição de organizações regionais e mecanismos internacionais, como a ONU (Organização das Nações Unidas) e a OTAM (Organização do Tratado do Atlântico Norte), que acabam por se constituir em territórios supranacionais, sempre na defesa em tese, dos povos mais fracos, oprimidos e desamparados, na busca de um alento nas causas humanitárias.

O problema na verdade, é de se questionar quais são os reais interesses que estão em jogo…? Como a retirada as pressas dos soldados norte-americanos do território de Cabul, deixando para trás uma população jogada à própria sorte, ameaçada pela vitória do Talibã, mais do que isso, o prenúncio de uma carnificina humana e uma catástrofe sem precedentes, isso certamente trouxe à tona aos EUA a dolorosa memória da queda de Saigon em 1975, 46 anos depois a história se repete. Segundo, Zizek (2011), parafraseando Marx, em “a história se repete primeiro como tragédia, depois como farsa,” para o filósofo esloveno, que sustenta a tese de que vivemos em uma nova etapa do capitalismo global, na qual o mesmo discurso que garantiu uma ofensiva geopolítica após os atentados de 11 de setembro tem encontrado dificuldade em se sustentar no período pós-crise financeira de 2008.

Explico, o que mais se assemelha neste tabuleiro da geopolítica internacional, as posições, ações e práticas do Joe Biden, Xi Jinping e Vladimir Putin…? Todos eles, muito preocupados com a expansão dos seus negócios e claro dos seus próprios interesses, no fundo, no fundo, ninguém está preocupado verdadeiramente com o bem estar do povo Afegão ou de outros povos… Segundo o Professor Theotônio dos Santos (2017), como um dos grandes protagonistas do grande debate acerca da geopolítica e as relações internacionais, na tradição marxista, ao afirmar que: “o realismo concentra-se em estratégias de equilíbrio de poder em um sistema internacional anárquico”.

Esse institucionalismo enfatiza a necessidade de elaboração de normas e de criação de instituições que mitigassem os efeitos da anarquia internacional. Esses receituários davam conta das necessidades narrativas e estratégicas do jogo de poder das grandes potências; afinal, toda teoria é interessada, toda mesmo. Como aponta Robert Cox: “Teoria é sempre para alguém e para algum propósito”. Dependendo do contexto geopolítico e do governo da situação, as portas giratórias que unem a alta cúpula estatal e a torre de marfim da academia fizeram com que acadêmicos se tornassem consultores políticos e que estadistas fossem alçados à condição de analistas acadêmicos. Com isso, as teorias obtiveram um viés de confirmação prática expressivo.

Por serem teorias portadoras de receituários de ação política, o realismo e o institucionalismo foram elevados à condição de “profecias autorrealizáveis”, para usar o termo de Robert Merton. Para o Professor Robert Cox (1997), ao considerar que qualquer análise sobre o “Sistema Internacional precisa considerar as condições históricas e sociais”, tanto dos agentes como das estruturas que subjazem as relações política e econômica.

Para tanto, ele investe firme na Teoria Crítica, considerada uma teoria social que observa o Estado, questionando seu verdadeiro papel, bem como possibilitando uma análise crítica de quais forças realmente seriam responsáveis pela moldagem da ordem mundial. Ou seja, a Teoria Crítica absorve elementos de historicidade, perspectivas de transformação e moldagem e uma abordagem teórica de totalidade social, englobando assim infinitas variáveis, com delimitações de caráter meramente metodológicas.

Contudo, o que se perpetua neste cenário assombroso, é absoluto sofrimento dos povos originários, que se traduzem neste momento numa tragédia social e a degradação humana, diante dos olhares incrédulos por alguns e absolutamente indiferentes de outros, exatamente daqueles responsáveis pelas promessas de vida, paz e prosperidade… Deixando na comunidade afegã um ar de cinzas, nas suas possibilidades mínimas de uma sobrevivência com alguma dignidade.

Estamos mais uma vez, diante de um quadro desolador, sombrio, assustador e desumano. O Afeganistão é um país do continente asiático, situado entre a sua porção central e o Oriente Médio. Tem um terreno montanhoso e clima árido e semiárido, com variações regionais. Conta hoje com mais de 38 milhões de habitantes, sendo a sua capital, Cabul, a cidade mais populosa. Ainda assim, o Afeganistão é um país essencialmente rural e de base agropastoril. Politicamente, passou por diferentes formas de governo e conflitos, sendo hoje uma República Islâmica, portanto, trata-se de um Estado religioso.

O Islã foi introduzido no país pelos árabes no século VII e constitui hoje a religião oficial do Afeganistão. Não há a laicidade do Estado, que determina hábitos e costumes a religião tende a ser fundamentalista e determinante no cotidiano daquela sociedade, aqueles que não querem conviver com as imposições e determinações das leis teológicas, serão punidos e pagarão muitas vezes com a própria vida. Sabemos que em pleno século XXI, conviver com algumas organizações religiosas extremistas, nos coloca diante de um “cenário medieval, da casa dos horrores” nos nossos dias, todavia, é imposto e aceito por boa parte dos fiéis islâmicos.

Uma das bandeiras defendidas pelo Talibã, são contra os hábitos e costumes da sociedade ocidental capitalista, “consumista, fútil e adúltera”, como eles percebem… São os mesmos mandamentos do Alcorão que foram utilizados, para expulsar os ocidentais do oriente médio, especialmente na República Islâmica do Irã, depois da Revolução Islâmica, com a queda do governo de Reza Pahlevi e o retorno do aiatolá Ruhollah Khomeini.

Que se encontrava exilado na França, mas que nunca perdera a ascensão e o controle daquela sociedade. Em 1979, a intensificação do movimento conseguiu impor a derrubada da ditadura de Reza Pahlevi e o retorno de Khomeini para a sua terra natal. Colocado como o Líder Supremo da nação, o aiatolá afastou a intervenção ocidental e privilegiou a retomada dos costumes e políticas subordinadas às tradições de fundo religioso.

Dessa forma, o Irã vai se transformar numa Teocracia marcada por alguns elementos democráticos, a constituição da República Islâmica do Irã. Voltando a Cabul, vamos co-relacionar com outras revoluções no mundo islâmico. Hassan al-Banna, fundador da Irmandade Muçulmana em 1928, disse a seus seguidores que sua maior prioridade era reunir os muçulmanos do mundo em um Estado islâmico supranacional ou Califado.

A imposição de fronteiras nacionais sobre povos que se definem em termos religiosos resulta no tipo de caos que temos observado no Oriente médio em parte da Ásia, onde está o Afeganistão/Cabul. Entre os muçulmanos, no entanto, esse tipo de pensamento é inaceitável. A religião islâmica se baseia na crença de que Deus criou uma lei eterna e cabe a nós nos submeter a ela. Isto é o que a palavra Islã significa: submissão.

O Islamismo sunita era a religião oficial dos otomanos. Nenhum outro tipo de Islamismo era reconhecido formalmente. Judaísmo, Zoroastrismo e facções do Cristianismo eram tolerados. Mas a história oficial, ao longo de vários séculos, era a de que o império era governado pela Sharia – a lei sagrada do Islã – acrescida de um código civil e pela lei doméstica de várias facções permitidas. Então, por que um Estado moderno não pode ser governado pela lei islâmica…? Esse é um tema polêmico, sobre o qual estudiosos formularam muitas opiniões. Em resumo: a lei laica se adapta, a lei religiosa meramente resiste. Além disso, como a Sharia não se adaptou, ninguém sabe realmente o que ela quer dizer.

Ela ordena que matemos adúlteros a pedradas? Isso nos faz lembrar, um outro compêndio, o chamado Código de Hamurabi uma compilação de 282 leis da antiga Babilônia, (atual Iraque), composto por volta de 1772 a.C. e, o seu trecho mais conhecido é a chamada lei de talião… Alguns dizem que sim, outros dizem que não. Portanto, as leis, sejam laicas ou religiosas, serão sempre alvo do questionamento da sociedade humana, pelos parâmetros e as diversas interpretações do que se convencionou como (justo, ou injusto), o fato é que, o que acaba predominando, são os hábitos e costumes dos povos originários.

E de tudo isso, no entanto, o que mais nos causa pesar, são como sempre, os sofrimentos daquelas populações mais vulneráveis os miseráveis, que foram usados pelos países invasores e não importa a bandeira, deixando mais uma vez, para trás, um rastro de destruição, abandono e morte a centenas, milhares de seres humanos(povo Afegão jogados à própria sorte). A partir da análise do Professor John Hobson (2002), “… sobre as reflexões marxistas destaca que a dominação capitalista, se processa por meio das relações entre Estados…” Essa hierarquização do espaço de sociabilidade capitalista obedece ao nexo do imperialismo”. Assim, o imperialismo é um vínculo que confere liga às relações que de fato existem no campo internacional. Compreender o imperialismo é conhecer as entranhas que dão organicidade ao capitalismo.

Por sua vez, compreender o capitalismo enquanto sistema econômico é a chave analítica que revela o jogo geopolítico por trás da acumulação de riqueza e de poder no sistema interestatal, muito bem gerenciado pelos impérios, na manutenção dos interesses hegemônicos de dominação e poder, para além do século XXI. Sobre esse tema, vai se posicionar de forma magistral o Professor Milton Santos (2000), sobre a “globalização, no processo da geopolítica internacional, quando da fragmentação ao expressar nos lugares os particularismos étnicos, nacionais, religiosos e os excluídos dos processos econômicos, educativos e civilizatórios, vão continuar os impérios nas suas sagas, com o objetivo primaz de acumulação do capital e de fomentar, ou promover a “exclusão social”. Assim o Professor vai defender a ideia de que é preciso uma nova interpretação do mundo contemporâneo, uma análise multidisciplinar, que tenha condições de destacar a ideologia na produção da história, além de mostrar os limites do seu discurso frente à realidade vivida pela maioria dos países do mundo.

A informação e o dinheiro acabaram por se tornar vilões, à medida que a maior parte da população não tem acesso a nenhum dos dois. São os pilares de uma situação em que o progresso técnico é aproveitado por um pequeno número de atores globais em seu benefício exclusivo. Resultado: um aprofundamento da competitividade, a confusão dos espíritos e o empobrecimento crescente das massas, enquanto os governos são incapazes de regular a vida coletiva, mas, de promover mais um genocídio, ou mais um etnocídio, como aliás, vem acontecendo recorrentemente. Assim, voltemos a pergunta inicial: O que há de comum entre Cabul e Saigon…?

**contribuição do Professor DsC. Dirlêi A Bonfim, Doutor em Desenvolvimento Econômico e Ambiental, Professor da SEC/BA**Sociologia**Cursos/Professor/Formador IAT/SEC/BA. Plano Form. Continuada /2021.2*

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