Por Josafá Santos
Freud escreveu que o sofrimento humano deriva de três vias: das vicissitudes, das forças da natureza; das doenças do corpo; das relações com outras pessoas. Não acredito que Freud explique tudo, nem ele nem a psicanálise, como se diz num certo jargão popular, mas nisso, e em tantas outras pontuações, lhe dou inegável crédito. Atendo à última fonte do sofrimento humano, como negar que o Outro – tantas vezes – nos trouxe / traz / trará, mais dor que prazer? Dos diversos espaços onde esse Um possa ter com esse Outro, vou me centrar num campo específico: o mundo do trabalho.
A palavra trabalho vem do latim tripalium, um instrumento que imobilizava o gado a ser ferrado, também usado na tortura de escravos e presos, no vasto/longevo Império Romano. Era uma cruz em X, presa numa estaca fincada ao chão. Com o tempo, passou a designar as atividade laborais, em especial as mais pesadas, no campo, nas minas, nas construções, nos exércitos, pois causava dor, desgaste, sofrimento. 1553 anos depois da queda de Roma, muito de sua história, de seus costumes, de sua língua, ainda nos alcançam. E se o trabalho, hoje, ao redor do mundo, conta com uma série de formatações que podem não ser exatamente ainda tipificadas como uma tortura, para outras tantas, o significado de sua origem segue indelével. O tripalium ainda é uso corrente sobre imensa fatia da classe trabalhadora, em todo o mundo. O chicote ainda sibila sobre as costas de muitos.
O século XIX foi um marco divisor da história da humanidade, em vários sentidos. Foi a época da concretização da Revolução Industrial, que levaria a relação do homem com o mundo a um nível de intervenção, até então, inimaginável. Por conta dela, o impacto da ação humana no meio ambiente, entre 1850 e 2000, foi maior do que de 1850 até a origem do homo sapiens, algo entre 200 e 300 mil anos. Demoramos cerca de 250 mil anos para chegarmos a um bilhão de habitantes, em 1800; Pelos avanços da Rev. Industrial, em apenas dois séculos, fomos a 8 bilhões, em 2022. Foi também a época de grandes pensadores que presenciaram a gênese dessa nova era e sobre ela se debruçaram, gênios como Auguste Comte, Émile Durkheim, Max Weber, Karl Marx, os pais da Sociologia. Foi também a época de Sigmund Schlomo Freud, que não era sociólogo, mas que deixou sua marca no “Século da Revoluções”, em sua obra sobre esse ser, o homem, a humanidade.
O século XX viu nascer a sociedade industrial e a inserção do homem no seu meio, numa desleal competição entre o ser e a sua obra, a máquina. Chaplin fora perfeito em “Tempos modernos”, mostrando o trabalhador, sendo dragado, engolido pela engrenagem, sendo por ela “moído” e então vomitado. No filme, o operário, engolido / vomitado pela máquina não seria mais o mesmo; o mundo, cada vez mais rápida e profundamente recodificado para alimentar esse novo Leviatã, o capitalismo, também não. O séc. XX assistiu esse novo monstro engolir nações, recolonizar continentes, arrastar o globo para duas grandes guerras em apenas vinte anos de intervalo. Na última, à entrada do campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau, os nazistas apregoaram a frase, “O trabalho liberta” (Arbeit macht frei). Chamar isso de cinismo é dizer pouco, como qualquer adjetivo ainda seria pouco para descrever a personalidade perversa de Theodor Eicke, inspetor de campos, general da SS, autor da ideia infame.
Mas hoje o mundo é outro. Finda a II Guerra, nasce a ONU e com ela seus diversos “ministérios”, como a OIT-Organização Internacional do Trabalho, a ratificar diversos parágrafos do Estatuto dos Direitos Humanos, dentro das atividades laborais, ao redor do globo. Assim, pontos como jornada máxima permitida, mínimo de pagamento legalmente aceito, combate à escravidão (clássica ou análoga), passaram a fazer parte desse “Admirável Mundo Novo”, mais industrializado mas, também (sic) mais humano. Eu disse humano? Disse; mas não foi exatamente um elogio.
Eu trabalho, formalmente, com carteira assinada, desde os meus 16 anos. Passei por algumas empresas, e na última, a Rede de Ensino do Estado, labuto desde o ano 2000. É uma fábrica, por assim dizer, com suas “esteira rolantes”, com suas divisões de poder e chaves de comando, como toda e qualquer fábrica, embora quem a dirija (e muitos que nela estejam…) neguem isso. Nesses 38 anos em chão de fábricas, vi muitos colegas adoecerem, alguns gravemente, justamente por conta da lida nessa fábrica / canavial, o mundo do trabalho no Brasil. As regras da OIT são as mesmas no mundo inteiro, mas isso não quer dizer que o mundo inteiro às sigam igualmente – ou que as sigam. Existem governos e “governos”, fábricas e “fábricas”. Mas, via de regra, nos 5 continentes, a classe trabalhadora, em sua esmagadora maioria, segue sendo submetida às mesmas condições vistas pelos pais da Sociologia, ainda no sec. XIX: desumanizados, explorados em sua mão de obra, mal remunerados desde sempre.
A OMS – Org. Mundial da Saúde, aponta a depressão como sendo o mal do século, e a depressão como sendo a maior causa de suicídios, em todo planeta. Entre os maiores causadores diagnosticados da depressão, está o estresse. E o estresse é mais notadamente perceptível, destruidor, sequelador, entre a classe trabalhadora, piorando nos grandes centros urbanos e nas regiões menos desenvolvidas, onde o trabalho é igualmente desumano, onde é, literalmente falando, tripalium, em sua forma bruta, crua, seja pelas péssimas condições de labor, seja pela baixíssima remuneração, que não permite a quem, de fato, produz toda a riqueza do mundo (palavras de K. Marx): se alimentar, se vestir, se cuidar, se educar; a ter o acesso real, para si e para os seus, à educação, à moradia de qualidade, ao lazer, à uma vida de efetiva dignidade, direito constituído de todo trabalhador, trabalhadora.
Freud estava certo quando pontuou em “O mal estar da civilização”, as três fontes de sofrimento humano. Mas Freud não explica tudo, e ele mesmo já dizia isso. Parte considerável das dores que chegam aos atendimentos Psi, não tem sua origem exatamente nas dores existenciais ou nos traumas pessoais, do mundo íntimo de cada um, em sua individualidade, ao longo da vida. Em muitos casos, a origem da (nossa) dor está lá fora, nas engrenagens do sistema que nos nulifica dia a dia, nos transformando, ruidosa ou silenciosamente, em res, em coisa, em peça descartável, nos situando em dois únicos lócus, espaços, no plano existencial: aquele que produz, ou aquele que consome. Finda a nossa capacidade de produzir ou consumir (leia-se: comprar), nossa utilidade também chega ao fim. Eu disse dois campos existências, mas na verdade são três. Muitos trabalhadores passam servir a seu amo; vão de escravos a capatazes, a capitães do mato, passam a operar na manutenção do sistema, se colando à Matrix. Para entendermos, para enxergarmos essas grades invisíveis que nos aprisionam, nós, da classe trabalhadora (e até mesmo para NOS entendermos enquanto isso, classe trabalhadora, operários, sem a conotação pejorativa ainda dada a estes termos), não precisamos abandonar a leitura de Freud, de Jung, ou de qualquer outro pensador do campo Psi; Não é menos Freud; é ler um pouco mais de Karl Marx e entender o que é a consciência (coletiva) de classe. Uni-vos! Unamo-nos!