[Opinião]: Maria Bethânia no FIB cantou o Brasil. A voz & “o grito”
Por Nádja Leite – Pontualmente às 21h do sábado, dia 27/08/2022, a cantora Maria Bethânia entrou no palco do Festival de Inverno Bahia, um dos maiores festivais musicais do interior do país. Ao entoar “Gema” (música de seu irmão Caetano Veloso) a artista fez, já de início, ressoar suas características marcantes como a voz e a corporeidade: as expressões faciais, as formas de tocar o cabelo, os pés descalços e o mover no palco. “Brilhante, ê, De noite dentro da mata, Na escuridão, luz exata, Vejo você”: essas foram as primeiras palavras ouvidas por um plateia numerosa composta por fãs e curiosos ansiosos pela primeira apresentação da “abelha rainha” na cidade de Vitória da Conquista.
Na sequência, a interprete foi revelando aos poucos a intenção do show, seja por meio das músicas e dos compositores escolhidos para formar a playlist ou pelas nuances e sutilezas dessas composições, e a intenção bem sucedida e confirmada por ela (em entrevista) era cantar o “Brasil”.
Após o show disse à equipe do Festival: “Fiquei emocionada e feliz com o público, achei que tinha uma compreensão do sentido do que é o meu trabalho, que é cantar o Brasil, o coração, a emoção… apaixonado, festivo, dolorido, machucado, incomodado, o Brasil”.
Assim, Bethânia trouxe o Brasil apaixonado por meio de canções consagradas por ela como “Negue” (de Adelino Moreira e Enzo de Almeida Passos presente no lendário Álbum Álibi), “Olhos nos Olhos” e “Grito de Alerta”, de Chico Buarque e Gonzaguinha (respectivamente), dois dos compositores mais gravados pela baiana, ou ainda a paixão contemplativa como nas músicas “Onde estará o meu amor” e “Estado de Poesia” do maranhense Chico César. Não deixou de fora também a paixão sertaneja “popularesca” com “É o Amor” (de Zeze Di Camargo) que a cantora gravou pela primeira vez em 1999 no álbum “A Força Que Nunca Seca”, dessa vez sampleada com “Vai dá namoro” (composta por Chico Amado e Dedé Badaró e interpretada pela dupla Bruno e Marrone) cuja ideia já havia sido trazida no show “Abraçar e Agradecer” comemorativo dos 50 anos de carreira da Santo-amarense.
Bethânia, em Conquista, fez a plateia dançar expondo o Brasil festivo, dos ritmos, especialmente o samba e o carnaval, passando pelo fado Português. O samba do recôncavo, de Santo Amaro (sua terra natal) e de Dona Canô (sua mãe) esteve presente em algumas interpretações e com “Yáyá Massemba”, de Roberto Mendes do Álbum Brasileirinho, disse e puxou a plateia pra entonar com ela: “vou aprender a ler para ensinar meus camaradas”. O carnaval veio por meio de um medley de marchinhas tendo a irônica “Filha da Chiquita Bacana” (de Caetano Veloso), já o fado foi mostrado por “Meu amor é marinheiro”, música de Alain Oulman imortalizada pela portuguesa Amália Rodrigues. A Menina Dos Olhos de Oyá (prenome dado à diva pela escola de samba Mangueira) trouxe ainda para o palco do FIB o Brasil afro e sincrético e assim dançou, com os pés descalços sentindo a vibração da terra e o tocar forte e marcante da percussionista Lan Lanh, as músicas “Oxum” e “Vento de lá”: “Foi o vento de Iansã dominador que dormia”. Lan Lanh na percussão ajudou a repaginar as clássicas “Um índio” (de Caetano Veloso) que teve uma nova força percussiva e o refrão falado pela interprete e “Reconvexo” (também do irmão) que foi apresentada mesclada com outras composições.
Mas para uma artista completa (em todos os sentidos) como Maria Bethânia não é somente o Brasil apaixonado, festivo ou religioso que importa, ela sabe que o país tem dores e incômodos históricos que precisam ser mostrados. E com semblante sério e imponente Bethânia relembrou o Brasil machucado cantando “Cálice” de Chico Buarque. “Como beber dessa bebida amarga. Tragar a dor, engolir a labuta. Mesmo calada a boca, resta o peito. Silêncio na cidade não se escuta”. Aquilo que começou como nuances foi ficando mais claro, quando ela vocalizou também “Galos, noites e quintais” (de Belchior) dizendo: “Mas veio o tempo negro e, à força, fez comigo
O mal que a força sempre faz”.
E quando a artífice encerrou o espetáculo para o já esperado pedido de bis da plateia veio o inusitado, mas de certa forma desejado por aqueles que estavam atentos aos detalhes já trazidos no emaranhado das canções. Um gesto de um músico com dois dedos formando uma letra, mostrado no telão, puxou o grito que estava preso na garganta de parte da plateia. Se não fosse neste ano, neste dia e nesta cidade específicos talvez o gesto passasse em branco. Mas o Brasil incomodado foi então reverberado por um grito que dizia: Olê, olê, olê, olâ, Lula lá, Lula lá. Sim, a letra gesticulada pelo músico e acompanhada pela maioria dos presentes era o “L” simbolizando o presidencial Lula, que neste momento não é somente uma letra, mas um grito, um incomodo, ou quiçá, uma esperança.
O Brasil incomodado (que ela falou na entrevista) foi gritado pela plateia. E o Brasil fatiado e dividido foi sentido quando parte do público que não gostou do gesto e nem do grito se retirou reclamando da arena do show. Após este plot twist, a cantora surgiu no meio do palco sorridente, deslumbrante e alegre com um sorriso faceiro que denunciava a sensação de alguém que estava cumprindo o seu ofício na maior plenitude.
Sutil, precisa, marcante e provocadora: assim foi Maria Bethânia em mais um festival. Brilhante, ê!
*Nádja Leite é publicitária e mestranda em Crítica Cultural – UNEB
Fotos: Laércio Lacerda
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