Por Nanda Feminella*
Após saírem de suas casas ou serem expulsos, muitas pessoas vão morar nas ruas. Algumas, enquanto passam fome, frio, sede, perigo e agressões, são contempladas e chegam no Lar da Misericórdia. Segundo o dicionário online de português, Dicio, o substantivo feminino, “misericórdia”, tem como um dos significados: “sentimento de pesar ou de caridade despertado pela infelicidade de outrem; piedade, compaixão” ou “ação real demonstrada pelo sentimento de misericórdia; perdão concedido unicamente por bondade; graça”. Motivado por uma crença religiosa em servir o próximo com ações, o fundador e presidente do Lar da Misericórdia, fundado em 2016, João Paulo de Oliveira, abriga moradores de rua na cidade de Vitória da Conquista – Ba.
“Pra envolver com uma ação dessa você precisa dar uma pausa nas suas coisas”, quem diz é João Paulo, aos 38 anos de idade, ao lembrar do início do seu trabalho com a população de rua. Ainda adolescente, ele iniciava um trabalho social que mudaria todo seu estilo de vida. Nas noites quentes ou frias, secas e chuvosas dos dias de sábado, o adolescente entregava alimentos e palavras de esperança aos moradores de rua da terceira maior cidade do estado da Bahia. A ação individual de um adolescente aos 16 anos de idade, iniciada no ano de 1999, tornou-se plural. Outras pessoas se juntaram e com João Paulo, levavam comida aos marginalizados das ruas, dando início ao grupo denominado Pastoral de Rua. Apesar da pouca idade, o adolescente fez uma escolha de forma consciente. Abriu mão dos estudos, do trabalho, da juventude e do próprio conforto para fazer o bem aos indesejados da sociedade.
Em 2002, a Pastoral de Rua passou a fazer parcerias com igrejas católicas e a partir delas, começou a utilizar espaços físicos para oferecer cuidados como: banho, alimentação e entretenimento aos moradores de rua. A caminhada não foi fácil. Em casas emprestadas, o grupo se juntava para cuidar dos ferimentos do corpo e da alma de homens e mulheres sem casa para morar. Em 2006, após muitas conversas e vínculos afetivos desenvolvidos com os indesejados da sociedade, João Paulo fundou uma casa de passagem responsável por dar assistência temporária àqueles que, por diversos motivos, saíram de suas casas. Contudo, foi em 02 de agosto de 2016 que o projeto Lar da Misericórdia tomou forma.
“Projetos não nascem no papel, nascem no coração”
De forma calma e tranquila, o fundador conta que o Lar nasceu a partir do seu esforço ao alugar uma casa, com recursos próprios, para abrigar um casal que pedia por ajuda. Logo em seguida, a ação se repetiu e novamente João Paulo fez o mesmo esforço para acolher Carlos Gomes. Alugou uma nova casa e a partir dela, muitos outros homens passaram a morar em um lar de misericórdia. A proposta da organização é hospedar e acompanhar, por um período que for necessário, moradores de rua. O Lar trabalha com a proposta de promoção humana e atualmente acolhe pessoas do sexo masculino. Para João Paulo, disponibilizar um espaço apenas para entrega de alimentação e recursos para promoção da higiene pessoal, não seria suficiente. É necessário oferecer condições de mudança. É crucial promover oportunidades para que homens consigam sair das ruas. Ou seja, em regime comunitário o Lar busca a reinserção dessas pessoas no mercado de trabalho, a reconstrução dos vínculos familiares e o regresso digno à comunidade.
Dos 17 moradores da casa, entrevistei o Carlos Gomes. Aos 63 anos de idade, natural de Cabo de Santo Agostinho, município do estado de Pernambuco, ele contou partes da sua história. “Eu sou do mundo. A mesma coisa de um hippie. Hippie tem casa? Hoje em dia quem tem casa é maribondo”, fala. Seu Carlos chegou no Lar da Misericórdia em 2016 e permanece até hoje. Com orgulho exibe sua coleção de DVD’s e com um sorriso sem dentes, mostra com felicidade o encarte do Marinheiro Popeye, Os Trapalhões, Amado Batista, Cavaleiros do Forró e diversos outros.
Apesar da diversificada coleção, não pode assistir seus filmes. Não há mais televisão em seu quarto. Segundo o fundador do Lar, a medida foi necessária como forma de manter a ordem e a socialização entre os moradores, mas como uma criança que apresenta queixas, Seu Carlos logo falou da falta que o aparelho televisivo lhe traz. Quem nunca teve muito na vida, sente falta do pouco que recebe. “Sem poder assistir, sem poder dar minha risadinha. Aí é uma dor pra pessoa, não é? É um aperreio para uma pessoa”, declara.
Diferente do Seu Carlos, Fernando Joel Pedroso chegou há pouco tempo, durante a pandemia de Covid-19. Atualmente cumpre uma sentença condenatória em regime domiciliar. Para não viver de favor ou na rua, pediu abrigo no Lar da Misericórdia. Na casa, vive uma rotina determinada. Às 7h30, inicia-se o desjejum, às 10h é servido o lanche da manhã e às 12h, o almoço. O café da tarde acontece às 16h e por volta das 19h, o jantar. Natural de Santarém, município do Pará, aos 63 anos de idade Fernando Joel permanece compartilhando com outros homens, um dos cinco dormitórios disponíveis no Lar, além de ajudar com a manutenção da casa. “Eu presto uns serviços aí. Lavo uns prato, lavo uns copo, umas xícara. Lavo o quarto”, conta.
Para João Paulo, a sociedade não deve caracterizar uma pessoa de rua por meio de uma fala, um rótulo, uma experiência. Trabalhar com o propósito de oferecer estrutura para uma futura independência não é fácil. “Há muitas dificuldades pra se manter um trabalho, ainda mais com pessoas em situação de rua. Eles têm toda uma situação de demanda. Você encontra situações mais dolorosas que uma pessoa pode chegar: perda do vínculo familiar, perda da credibilidade com a sociedade, dependência, transtorno”, explica.
No momento, o Lar oferece moradia para 17 pessoas e apesar das dificuldades, funciona com o objetivo de resgatar a identidade dos moradores de rua, por meio da promoção humana. Ao todo, cerca de 150 pessoas já moraram na casa e para que todo o trabalho funcione, o Lar da Misericórdia conta com voluntários e alguns prestadores de serviço. Segundo o fundador da organização, atualmente há duas pessoas fixas responsáveis pela cozinha e limpeza do local, além de um prestador de serviço responsável pela alimentação, concedido pela Prefeitura Municipal de Vitória da Conquista, e três diaristas que realizam os serviços de limpeza e de acompanhamento, conforme a demanda. A casa é mantida por meio de doações, financeira e alimentícia, que acontecem de forma espontânea, mas a organização também conta com a contribuição mensal de cerca de 50 pessoas. “O intuito é ter nossa sede própria. A gente foi ao poder público, solicitou um terreno, mas o poder público vai fazer outro pedido de novo. A gente precisa de um terreno grande para fazer nossa casa”, explica. Hoje, o Lar encontra-se localizado no bairro Jurema, na avenida Yolando Fonseca, nº 34.
Viver é administrar sofrimentos, tristezas, angústias, escolhas, erros. Essa realidade atinge a todos, porém, em graus diferentes. Quando falamos de pessoas em situação de rua, falamos de pessoas abatidas, sem assistência e para atendê-las, se faz necessário conhecer suas demandas. Por isso, João Paulo decidiu permanecer morando no Lar. Apesar de trabalhar por mais de 20 anos com esse público, o fundador e presidente nunca viveu uma dependência química, nunca perdeu o vínculo familiar. Sendo assim, precisa estar perto para conhecer em profundidade uma realidade que nunca foi a sua: morar na rua. “Você tem que ter o conhecimento profundo e esse conhecimento não é seu, é da experiência do outro”, diz.
É com ajuda da sociedade que o Lar da Misericórdia permanece há cinco anos oferecendo moradia às pessoas que não tinham onde morar. Assim aconteceu com Márcio Lima de Souza, natural do Rio de Janeiro. Após vivenciar problemas com a família, decidiu sair de casa e morar na rua por um período de um ano. “Quando minha vó morreu, ficou aquela briga pela casa, aí eu fiquei meio chateado com aquilo. Minha vó tinha nem esfriado no caixão”, fala aos 37 anos de idade. Ao chegar em Vitória da Conquista, pediu abrigo no Lar, foi recebido, cuidado e hoje é um acolhido externo, ou seja, presta serviços na casa, recebe auxílio, mas não faz morada. Márcio é a prova viva que é possível sair das ruas.
Com o início da Pandemia muitos moradores de rua procuraram abrigo, mas o Lar não pode recebê-los devido à pouca quantidade de vagas e recursos humanos. Contudo, ainda permanece a esperança em conseguir um lugar maior para abrigar uma parcela da população que busca fugir da rota do vento das noites frias de Vitória da Conquista e que caminha pelas ruas da cidade em busca de alimentação e guarida. Até esse dia chegar, o Lar da Misericórdia permanecerá acolhendo homens como Carlos Gomes ou Fernando Joel, para que um dia possam se tornar como Márcio: ex-morador de rua. Dormir sob as estrelas, dia após dia, não passa de uma visão romântica e clichê sobre liberdade.
Para que seja possível o Lar continuar oferecendo acompanhamento psicológico, assistência jurídica, suporte psicossocial e abrigo às pessoas em situação de rua, doações financeiras podem ser realizadas por meio da conta da Caixa Econômica Federal, 00001415-5, operação: 003 e agência: 3543. As doações alimentícias podem ser entregues no endereço da casa: avenida Yolando Fonseca, nº 34 – Jurema – Vitória da Conquista, Ba.